"A tecnologia digital é a arte de criar necessidades desnecessárias que se tornam absolutamente imprescindíveis." (Joelmir Beting)
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
NOVAS TECNOLOGIAS NA SALA DE AULA: MELHORIA DO ENSINO OU INOVAÇÃO CONSERVADORA?
Por:Paulo Gileno CYSNEIROS
INTRODUÇÃO
Qualidade... a gente sabe o que é, e, ao mesmo tempo, não sabe. Isso é contraditório. Mas algumas coisas são melhores do que outras, ou seja, têm mais qualidade... Mas o que é “ser melhor”? Porém se a gente tenta definir qualidade, isolando-a das coisas que a possuem, então puf! - já não há o que falar... [i], (p.175).
Inicialmente gostaria de fazer algumas breves colocações sobre a sala de aula que tenho em mente ao discorrer sobre a qualidade do ensino, sobre novos desafios, sobre novas abordagens da comunicação mediada pela tecnologias da informática.
O contexto amplo, material e humano, em determinados tempos e espaços, não pode ser separado das discussões neste simpósio, sob pena de ficarmos falando sobre abstrações desenraizadas, longe das realidades que as condicionam, isolando nossas idéias “das coisas que as possuem”.
Penso na realidade cotidiana de grande parte das escolas públicas do nosso país e mesmo da América Latina. São as escolas onde situo minha experiência, nos estados do norte e nordeste e nas regiões rurais, que ainda sofrem de males consideráveis.
São escolas que servem a comunidades carentes que nem sempre as consideram como suas e que não dispõem do recurso tecnológico mais fundamental que é uma biblioteca atualizada razoável.
Nas grandes cidades, as salas de aula de tais escolas tem pouco espaço físico, são ruidosas, quentes e escuras, desencorajando qualquer outra atividade que não seja a aula tradicional. A arquitetura pobre e o mobiliário desconfortável e precário dificultam o trabalho intelectual de alunos e mestres. São instituições dependentes da administração central das redes escolares, em contextos de forte dependência da burocracia cristalizada e das oscilações de quem estiver no poder.
O professor encontra-se sobrecarregado com aulas em mais de um estabelecimento, falta-lhe tempo para estudar e experimentar coisas novas, recebe baixos salários. Em tais escolas tenho encontrado pessoas ensinando matérias que não dominam, como também casos incipientes de alcoolismo e um semi-absenteísmo camuflado, com o professor evitando sempre que pode a sala de aula ou fazendo de conta que ensina, em parte resultado de um esgotamento profissional prematuro.
Mas também em tais escolas aprendi a ter um profundo respeito pela grande maioria de professores e professoras que desenvolveram formas criativas de ensinar e de educar, construídas dentro das limitações e das condições existentes. À partir desta atitude de respeito, de aprendizagem mútua, tem sido possível experimentar novas abordagens, com alguns sucessos em meio a alguns fracassos.
Sei que esta situação está melhorando lentamente e que nos estados mais ricos (em recursos materiais e humanos) já existem muitas escolas e redes que não se enquadram na breve caracterização acima. No entanto, por dever de consciência, não posso tomar como referência os mais aquinhoados. Sei também que tais questões são complexas e que não existem soluções fáceis.
Algumas das idéias que irei colocar são fruto de minha vivência nas escolas e na universidade; outras estão inacabadas, mas acredito que compartilhando-as e colocando-as em discussão, poderão ser modificadas e aplicadas em situações diversas, uma vez que a escola como instituição possui características comuns muito fortes.
HISTÓRIA DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL
Ao tratarmos de novas abordagens de comunicação na escola, mediadas pelas novas tecnologias da informação, estamos tratando de Tecnologia Educacional. Esta observação é pertinente porque certos autores consideram este tema como algo inteiramente novo. Tudo tem uma história, explícita ou não, cabendo ao conhecedor crítico tentar desvendá-la, interpretá-la e usá-la para não repetir erros.
Uma das principais referências nesta área é o trabalho de Larry Cuban [ii], professor de educação da Stanford University, intitulado Professores e Máquinas: O Uso da Tecnologia na Sala de Aula desde 1920. Cuban estudou a introdução do rádio, filme, TV e computador em escolas norte-americanas, abrangendo a literatura desde o início deste século até meados da década de oitenta.
Sua principal conclusão é que o uso de artefatos tecnológicos na escola tem sido uma história de insucessos, caracterizada por um ciclo de quatro ou cinco fases, que se inicia com pesquisas mostrando as vantagens educacionais do seu uso, complementadas por um discurso dos proponentes salientando a obsolescência da escola. Após algum tempo são lançadas políticas públicas de introdução da nova tecnologia nos sistemas escolares, terminando pela adoção limitada por professores, sem a ocorrência de ganhos acadêmicos significativos. Em cada ciclo, uma nova seqüência de estudos aponta prováveis causas do pouco sucesso da inovação, tais como falta de recursos, resistência dos professores, burocracia institucional, equipamentos inadequados.
Após algum tempo surge outra tecnologia e o ciclo recomeça, com seus defensores argumentando que foram aprendidas as lições do passado, que os novos recursos tecnológicos são mais poderosos e melhores que os anteriores, podendo realizar coisas novas, conforme demonstram novas pesquisas. E o ciclo fecha-se novamente com uso limitado e ganhos educacionais modestos.
Cuban nos mostra coisas interessantes, como o trecho de um discurso de Thomas Edison (inventor do telégrafo, do gramofone e da lâmpada elétrica), prevendo, em 1913, que os livros didáticos se tornariam obsoletos nas escolas e que, usando filmes, seria possível instruir sobre qualquer ramo do conhecimento humano. Em 1922, Edison ainda afirmava que “... o filme está destinado a revolucionar nosso sistema educacional e em poucos anos suplantará em muito, senão inteiramente, o uso de livros didáticos”.
Da mesma época, Cuban [op.cit, p.5] transcreve um poema de uma professora, intitulado “Antiquado”, que ilustra bem o sentimento do educador que se sente ultrapassado pelo discurso das maravilhas de novas tecnologias na educação:
O Senhor Edison nos diz
Que o rádio superará o professor.
Já se pode aprender línguas pela Victrola
E o filme dará movimento
Àquilo que o rádio não conseguir.
Professores passarão
Como passaram carros de bombeiro a cavalo
E damas de cabelos longos.
Talvez eles sejam mostrados em museus
E educação será um pressionar de botões.
Oxalá haja lugar para mim no painel de controle.1
Outros aspectos do trabalho de Cuban merecem reflexões amplas, como o discurso de pioneiros da tecnologia prevendo o acesso de todos os alunos - independente de condição social ou de escola - a materiais educacionais da melhor qualidade (hoje o discurso é sobre o acesso à informação pela Internet).Também nos mostra uma foto de
uma aula “aérea” de Geografia, a bordo de um avião adaptado com fileiras de carteiras e um quadro de giz, paradoxalmente retratando uma turma de alunos sentados, com uma professora (tudo indica), ministrando uma aula convencional com um pequeno globo terrestre.
Que lições podemos aprender desta história, de um ciclo já ocorrido também com a informática na educação (e.g Watson [iii]; Valente & Almeida [iv]), em vários países do Norte? Que proveito podemos tirar, se quisermos experimentar as novas tecnologias da informação e da comunicação nas escolas acima mencionadas?
Tais dúvidas tornam-se mais agudas se considerarmos comentários recentes como os de Sherry Turkle,2 que há anos vem estudando as interações de crianças com computadores. Segundo ela, “... as possibilidades de usar esta coisa (os computadores) pobremente são tão maiores do que as chances de usá-los bem, que deixam pessoas como nós - fundamentalmente otimistas acerca do uso de computadores - muito reticentes.” [v]
Nossa utopia é sempre tentar mudar a história futura para melhor, e não defendo posições tradicionalistas ou contrárias à tecnologia na educação. Vejo as novas tecnologias como mais um dos elementos que podem contribuir para melhoria de algumas atividades nas nossas salas de aula. Por outro lado, também não adoto o discurso dos defensores da nova tecnologia educacional, que mostram as mazelas da escolas (algo muito fácil de se fazer), deixando implícito que nossos professores são dinossauros avessos a mudanças. É um discurso tentando nos convencer a dar mais importância a objetos virtuais, apresentados em telinhas bidimensionais, deixando implícito que a aprendizagem com objetos concretos em tempos e espaços reais está obsoleta.
No Brasil percorremos uma história análoga, certamente mais recheada de insucessos, como demonstram teses e dissertações sobre o tema. Também tivemos uma política de rádio na educação, seguida de outras com grandes investimentos nas televisões educativas em todo o país, sempre acompanhadas de discursos inovadores.
No início dos anos oitenta iniciaram-se as primeiras políticas públicas em informática na educação, no contexto mais amplo da reserva de mercado para informática. Nosso primeiro projeto de âmbito nacional priorizou a pesquisa, dotando cinco universidades públicas com verbas do Projeto EDUCOM, que não chegou a atingir muitas escolas, mas produziu um bom contingente de recursos humanos nas instituições beneficiadas. Foram bolsistas de pesquisa que hoje em boa parte são pesquisadores nos vários campos da educação, com trabalhos em Informática Na educação.
Na época, a contradição entre tecnologia de ponta e escolas precárias era mais evidente, uma vez que os computadores eram máquinas mais caras e não estavam tão
disseminados na sociedade como hoje. Aprendemos que a expectativa de administradores, professores, alunos e pais era que se ensinasse informática na escola, não no sentido de uso pedagógico de computadores,[vi] [vii] nos levando a explorar a introdução da informática na escola como uma mistura de Informática Na educação e de preparação para o trabalho, tentando usos pedagógicos das ferramentas de software utilizadas fora da escola.[viii]
A nível nacional, a história tem sido contada, de modo otimista, sob a ótica dos responsáveis pelas políticas públicas na época.[ix] [x] Com o término do EDUCOM, foi lançado um programa de Centros de Informática Na educação nos estados, CIEDs [xi], considerado um sucesso por alguns (e.g. Moraes, [op.cit]), mas que na realidade praticamente não afetou as salas de aula na grande maioria do país.
Atualmente estamos vivendo um outro estágio, com uma política federal de se colocar 100 mil computadores em escolas públicas e treinar 25 mil professores em dois anos, através do projeto PROINFO[xii] cujo ponto divergente de políticas passadas é a intenção de se alocar quase metade do dinheiro para formação de recursos humanos, procurando evitar os erros cometidos em programas deste mesmo governo como o vídeo escola, onde a ênfase maior foi na colocação de equipamentos nas escolas.
Apesar de ter havido avanços, algumas falhas desta política já podem ser notadas, como a ausência de articulação com os demais programas de tecnologia educativa do MEC, especialmente com o vídeo escola, e com outros como educação especial. Também não foi contemplada a formação regular de professores nas universidades, principalmente aqueles que estão concluindo seus cursos e entrando no mercado de trabalho.
Várias faculdades de educação de universidades públicas que estão ministrando cursos de especialização para os professores que irão atuar como multiplicadores nos Núcleos de Tecnologia Tducacional (NTEs) do PROINFO, não dispõem de laboratórios para trabalho com Informática Na educação. Finalmente, não existe uma política de apoio a pesquisas que façam acompanhamento e dêem suporte aos NTEs que irão formar os professores da escolas beneficiadas.
INOVAÇÃO CONSERVADORA
O fato de se treinar professores em cursos intensivos e de se colocar equipamentos nas escolas não significa que as novas tecnologias serão usadas para melhoria da qualidade do ensino. Em escolas informatizadas, tanto públicas como particulares, tenho observado formas de uso que chamo de inovação conservadora,3 quando uma ferramenta cara é utilizada para realizar tarefas que poderiam ser feitas, de modo satisfatório, por equipamentos mais simples (atualmente, usos do computador para tarefas que poderiam ser feitas por gravadores, retroprojetores, copiadoras, livros, até mesmo lápis e papel). São aplicações da tecnologia que não exploram os recursos únicos da ferramenta e não mexem qualitativamente com a rotina da escola, do professor ou do aluno, aparentando mudanças substantivas, quando na realidade apenas mudam-se aparências.
A história da tecnologia educacional contém muitos exemplos de inovação conservadora, de ênfase no meio e não no conteúdo. Devido ao efeito dramático, sedutor, da mídia, em certos casos a atenção era concentrada na aparência da aula, tomando-se como algo “dado” o conteúdo veiculado, seja na sala de aula por transparências ou filmes, ou pela difusão ampla de conteúdos, através da TV, do rádio ou mesmo de livros textos cheios de figuras, cores, desenhos, fotos.
As disciplinas de fundamentação também não ajudavam muito, ao preconizarem princípios e leis gerais de aprendizagem e de ensino, sem focar a aplicação de tais conhecimentos em conceitos específicos e sem a pesquisa sobre o ensino de tais conceitos, que oferecesse ao professor indicadores da eficácia dos novos meios e modos de apresentar o conteúdo.
Assim, à primeira vista, impressionava o uso de transparências graficamente impecáveis, com recursos que podiam distrair o aluno espectador, principalmente quando o aprendiz não entendia ou não gostava do conteúdo.
Atualmente a inovação conservadora mais interessante é o uso de programas de projeção de tela de computadores, notadamente o PowerPoint©, com o qual o espetáculo visual (e auditivo) pode tornar-se um elemento de divagação, enquanto o professor solitário na frente da sala recita sua lição com ajuda de efeitos especiais, mostrando objetos que se movimentam, fórmulas, generalizações, imagens que podem ter pouco sentido para a maioria de um grupo de aprendizes. A inatividade (física e mental) do aprendiz é reforçada pelo ambiente da sala, geralmente à meia luz e com ar condicionado. Como veremos mais adiante, tais tecnologias amplificam a capacidade expositiva do professor, reduzindo a posição relativa do aluno ou aluna na situação de aprendizagem.
Além do computador propriamente dito, outros artefatos de ensino vem sendo criados com a tecnologia da informática. Em uma de minhas aulas, um aluno-professor fez uma observação sobre um quadro de pincel que produz na tela do computador do aluno aquilo que for escrito pelo professor. A exposição pode até ser mais convincente no inicio, devido ao aspecto dramático, mas essencialmente não difere de uma aula tradicional. Outra variante é um quadro de pincel que, ao aperto de um botão, produz uma cópia xerográfica reduzida daquilo que foi escrito ou desenhado.
Quando analiso tais tecnologias nas minhas aulas, tenho observado reações espontâneas de professores que se impressionam, fazendo comentários tipo “que maravilha.” Tais reações são indicadores da crença secular de um grande número de educadores, que ensinar é expor, embora possam dizer o contrário. Não quero com isso afirmar que tais tecnologias de exposição não são úteis. São sim, nas mãos de mestres criativos, dentro de contextos apropriados. Podem ser usados quando se deseje que aluno não se distraia copiando detalhes, pedindo-se logo depois que ele ou ela trabalhe com o material impresso copiado do quadro eletrônico. Também podem facilitar a comunicação e a vida do professor, possibilitando criar transparências em pouco tempo, praticamente durante uma aula, para responder a dúvidas de alunos, quebrar a monotonia, preparar rapidamente material para aulas seguintes.
Mas tal tipo de artefato pode também ter efeitos contrários, gerando situações onde o aluno não precisa nem mais copiar - a coisa já vem pronta e acabada para se levar para casa e memorizar para a prova. Tal tipo de mídia pode também reforçar no aluno uma falsa sensação de ter aprendido a lição, pois tudo que o mestre escreveu está ali, gravado, do jeito dele, com os mesmos espaços, tamanhos, etc. Essa sentimento é ilusório, como todo mundo que já passou pela escola sabe. Alguns dias depois o aluno submete-se a uma prova confiante que aprendeu, e verifica que o conteúdo não foi assimilado segundo os objetivos (ou a avaliação) do professor. Como me disse uma vez um experiente professor de Química, há uma enorme distância entre a axila (onde o aluno coloca o caderno de anotações após a aula) e a cabeça.
Poderíamos comentar muitos outros exemplos de inovação conservadora no ensino. Tenho visto software educativos que apenas “penduram” mapas mundi em um telão ou no vídeo de computadores onde alunos sentam de modo solitário, pouco diferindo de similares pendurados nas paredes da sala de aula.
Outro exemplo comum é a digitação de trabalhos escolares convencionais, dentro ou fora da sala de aula e sem a orientação do professor. Neste caso, a tecnologia pode até facilitar ou dissimular a cópia plagiadora de pedaços de enciclopédias, de páginas da Internet, de livros de texto e de materiais gráficos escaneados. Tais produções de alunos podem impressionar professores sem experiência de computadores, pelo aspecto gráfico esmerado dos trabalhos e pela extensão do texto (em alguns casos feitos por outra pessoa, algo mais difícil de ocorrer quando o professor conhece a caligrafia do aprendiz).4
Vários autores reconhecem que os usos educativos das tecnologias da informação na última década - instrução assistida por computador (CAI), informações em rede, aprendizado à distância - foram embasados em métodos pedagógicos tradicionais: fluxo unidirecional de informações, tipicamente um professor falando ou comentando imagens para alunas e alunos passivos.[xiii]
Outra prática trivial é a confecção de faixas e cartazes por programas monótonos de computadores. Antes, em formulário contínuo; atualmente, com impressoras coloridas que consomem caros cartuchos descartáveis de tinta, algo despropositado quando ocorre nas escolas que caracterizei antes. Tais materiais podem ser bem mais baratos,bonitos e criativos quando confeccionados com pincéis e papéis coloridos, com a ajuda de alunos talentosos (sem excluir, obviamente, o uso ocasional de tais programas gráficos).
Alguns professores experientes percebem que quase nada mudou na sala de aula, porém outros, talvez iludidos por um suposto efeito do computador, vêm vantagens nas novas formas de apresentar o conteúdo, algumas vezes reforçadas por um discurso defendendo o construtivismo ou outros conceitos da moda, pouco ou mal-compreendidos. Os alunos também cansam-se facilmente após o efeito da novidade.
Um excelente exemplo de inovação conservadora encontra-se em um belo livro de Asimov[xiv], exibindo e comentando uma série de cartões produzidos por um desenhista francês no final do século passado, imaginando o que seria a sociedade do ano dois mil. Um dos desenhos representa uma escola deste final de século, com alunos sentados em fileiras com fones de ouvido, recebendo passivamente o conteúdo de livros que estão sendo “moídos” por um ajudante do professor. Há pouco tempo vi uma foto em uma revista semanal de educação, provando que o desenhista estava certo, ilustrando uma situação semelhante em uma escola paulista de elite, onde os alunos portavam óculos de realidade virtual em lugar de fones de ouvido.
Outra distorção, associada ao conceito de inovação conservadora é o que Salomon & Perkins[xv] chamam de Rationale do Monte Everest (“porque está lá”), ou seja, a preocupação de professores em usar as tecnologias da informática no maior número possível de disciplinas e de conteúdos, uma vez que tudo hoje é feito com computadores.
A presença da tecnologia na escola, mesmo com bons software, não estimula os professores a repensarem seus modos de ensinar nem os alunos a adotarem novos modos de aprender. Como ocorre em outras áreas da atividade humana, professores e alunos precisam aprender a tirar vantagens de tais artefatos. Um bisturi a laser não transforma um médico em bom cirurgião, embora um bom cirurgião possa fazer muito mais se dispuser da melhor tecnologia médica, em contextos apropriados.
INTERNET, INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO
Outro aspecto que pode confundir o educador é o discurso da necessidade da informação (colocado por Seymour Papert[xvi], e por alguns conferencistas de congressos de informática), que nos causa de inicio certa angústia ao concluirmos que a escola não tem acesso imediato à enorme quantidade de informação que é produzida diariamente no mundo.
“Meu Deus”, o pobre professor tende a pensar, “estou desatualizado. Preciso de um computador para fazer tal trabalho inteligente para mim e meus alunos.”Dai é fácil concluir que a escola também está obsoleta, que a disciplina que ensina está desatualizada, que os livros são antiquados, etc. Em tais horas, devido ao sentimento de inadequação, não ocorre ao professor que o mais importante é o ato de pensar com determinadas informações, não o acesso indiscriminado a qualquer informação.
Esta situação me lembra uma estorinha contada de modo mais ou menos gaiato (com uma pitada de ironia) por Ariano Suassuna, sobre duas estudantes universitárias que aplicavam um questionário à gente simples de uma cidade do interior da Paraíba. Chegando à beira do açude local, as universitárias abordaram dois pescadores que acabavam de chegar com alguns peixes, em uma tosca embarcação. Uma das pesquisadoras pergunta:
- O senhor sabe quem é o governador do estado?
- Sei não moça.
- Sabe quem é o prefeito da cidade?
- Também não moça.
- Conhece algum deputado?
- Conheço não moça
Houve um pequeno silêncio, quando uma das meninas comentou casualmente:
- Puxa, moço, o senhor não sabe nada, hein?
Um dos pescadores pegou um dos peixes pelo rabo e perguntou às forasteiras:
- Vocês sabem que peixe é esse?
- Sei não, moço.
- E esse outro, vocês conhecem?
(A mesma resposta negativa).
- E esse? E esse aqui?
Foi a vez do pescador comentar:
- Pois é moça, cada um com suas ignorâncias.
Certamente a maior parte das informações disponíveis na Internet não seria de muita valia para os problemas encontrados pelos pescadores naquele interior da Paraíba. Ao contrário, eles teriam muito para colocar na rede mundial.
Para a formação básica de uma criança e para resolução dos problemas que alguém encontra no dia a dia, as informações mais relevantes são aquelas amadurecidas pelas gerações passadas, pelo tempo, ou aquelas encontradas na própria comunidade, acessíveis através de meios mais simples como jornais e pelo contato humano no próprio grupo social, não aquilo que está ocorrendo em Nova Iorque ou em Tóquio e colocado na Internet.
Claro que muito do acervo cultural da humanidade pode ser obtido através da Internet, em alguns casos de modo vantajoso, mas em outros com a possibilidade de usos que caracterizei antes como inovação conservadora.
Embora a Internet seja um recurso com muito potencial para determinadas atividades educativas, ela também pode ser mais um fator de colonialismo cultural, pois estamos recebendo a informação daqueles que tem condições de colocá-la nos computadores, reduzindo nossa presença e ampliando o alcance do poder de suas idéias, com todos os fatores associados do formato hiupertexto, da velocidade, de multi-representações.
Nesta ótica, é muito importante que coloquemos tais máquinas nas mãos de nossas crianças e adolescentes, porém sempre predominando o ato de educar, de examinar criticamente - numa atitude freiriana -, aquilo que está lá. Onde a sabedoria de um professor de uma escola rural, ou de um velho pescador da comunidade, pode ser mais importante para a formação da identidade da criança e para a sobrevivência da cultura do que toda a informação que é produzida diariamente nos lugares sofisticados do planeta.
Tal atitude não se coaduna com outra face implícita em alguns discursos sobre a Internet, defendendo a idéia de que as crianças sabem o que querem, que o mais importante é a curiosidade, a espontaneidade, o aspecto lúdico da aprendizagem.
Embora devamos perseguir o ideal de uma aprendizagem estimulante e auto motivadora - em salas de aulas ricas em recursos e com respeito à individualidade e espontaneidade do aprendiz - sabemos que além do prazer da descoberta e da criação, é necessário disciplina, persistência, suor, tolerância à frustração, aspectos do cotidiano do aprender e do educar que não serão eliminados por computadores.
UMA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL
Desde minhas primeiras incursões pela literatura sobre as tecnologias da informação e da comunicação, aplicadas ou não à educação, tenho tido a impressão de caminhar sobre um grande mosaico de pedras desconexas, de formas e tamanhos diversos. Muitas são peças novas, fascinantes e de boa qualidade. Outras são recentes, mas quando examinadas de perto revelam ser apenas fantasia ou pedras gastas, repintadas. Algumas são antigas, resistentes e encaixam muito bem com as novas, de boa qualidade. Outras são muito interessantes, mas ainda não foram cortadas e cozidas, e podem até quebrar quando submetidas à temperatura dos fornos que conferem intemporalidade às cerâmicas nobres.
Esta analogia traduz uma sensação que talvez seja uma das características permanentes da multidisciplinaridade de um área como a Informática Na educação. Mas sinto falta de uma abordagem coerente, que tenha começo, meio e aponte para algum fim. Esta necessidade torna-se mais saliente quando trabalhamos com a formação de professores em Informática Na educação, que aprendem habilidades diversas e são expostos a teorias e pontos de vista muitas vezes desconexos.
Na tentativa de dar coerência ao todo, fui encontrar na Filosofia (como não poderia deixar de ser), um dos enfoques amplos que podem servir como ponto de partida. Numa perspectiva das filosofias da práxis,5 venho explorando, para a construção, mesmo modesta, de um modelo, partes do trabalho de Don Ihde [xvii] que, baseando-se em Heidegger e em Husserl, examina o uso humano de ferramentas.
A Fenomenologia tenta abordar os objetos do conhecimento tais como aparecem, isto é, tais como “se apresentam” à consciência de quem procura conhecê-los, tentando deixar de lado toda e qualquer pressuposição sobre a natureza desses objetos (Heidegger [xviii], Rezende [xix]), Um dos primeiros passos neste sentido é tentar rever a experiência psicológica do óbvio, do cotidiano, cujo conhecimento é embotado pela familiaridade. Tal abordagem, embora pareça fácil, torna-se difícil pela enorme complexidade da experiência humana. Como diz um ditado, o peixe é o último a descobrir a água.
Nossa experiência da realidade é transformada quando usamos instrumentos {Ser Humano > (máquina) > Mundo}. Através do instrumento há uma seleção de determinados aspectos da realidade, com ampliações e reduções. A amplificação é o aspecto mais saliente e pode nos deixar impressionados, maravilhados, ao experimentarmos coisas (ou aspectos de objetos conhecidos) que não conhecíamos antes, com nossos sentidos nus. A redução, ao contrário, é recessiva e pode passar despercebida, uma vez que não ocupa necessariamente nossa consciência, impressionada com o novo.
Uma das conclusões de uma primeira análise fenomenológica superficial é que a tecnologia não é neutra, no sentido de que seu uso proporciona novos conhecimentos do objeto, transformando, pela mediação, a experiência intelectual e afetiva do ser humano, individualmente ou em coletividade; possibilitando interferir, manipular, agir mental e ou fisicamente, sob novas formas, pelo acesso a aspectos até então desconhecidos do objeto.
Dependendo do objeto, do sujeito (mais ou menos crítico), de sua história e da situação especifica, pode-se considerar as novas características ampliadas do objeto como mais reais do que aquelas conhecidas sem a ajuda de instrumentos. Pode-se, assim, confundir as duas dimensões de continuidade (em essência o mesmo objeto) e diferença (conhecido parcialmente de outro modo) entre a percepção ordinária e aquela mediada. Neste sentido, as realidades possibilitadas pelas novas tecnologias da informação podem ser alienantes, como nos relatos dos viciados em computadores.
Para ilustrar, examinemos superficialmente o uso mais comum de computadores, que é a manipulação de textos. Que aspectos do objeto texto podem ser selecionados, ampliados, reduzidos através do instrumento? O texto em papel (em átomos, como diz Negroponte [xx]) amplia a permanência da escrita (não é facilmente modificável) e a comodidade de manuseio pelo leitor, podendo ser transportado para qualquer lugar, colocado em qualquer posição, riscado, dobrado, relido, compartilhado sem necessidade de qualquer outro suporte auxiliar.
Já o texto eletrônico (em bits, segundo o autor citado) é facilmente modificável e transportável sem as limitações de distâncias, mas depende de um computador e de energia elétrica para ser lido; também não é tão móvel como um conjunto de folhas de papel e não pode ser riscado com tanta facilidade.
Em certas situações o texto em papel é muito mais cômodo que em computador. Mas se quero reescrever um artigo ou enviá-lo para um colega noutra cidade, a forma eletrônica é muito mais adequada. A história pessoal de muitos de nós, acostumados com a escrita em papel, revela nossas reações de surpresa (efeito dramático), quando experimentamos, nas primeiras vezes, o ato de escrever mediado pelo computador.
Outro aspecto que tende a passar despercebido é o caráter inicial dramático da realidade mediada pela nova tecnologia. Nos primeiros anos do cinema, por exemplo, as platéias em salas escuras tinham medo de cenas de trens que se aproximavam do espectador (confusão entre percepção ordinária e mediada). Ainda hoje, depois de quase meio século, a TV ainda goza do charme dramático da novidade, ao realçar formas e alterar perspectivas de rostos e de outros detalhes corporais; ao criar efeitos e modificar tempos e espaços de objetos apreendidos por lentes e manipulados depois em laboratório, mostrando-os repetidamente, descobrindo ou inventando novas realidades.
Além de ampliar os sentidos, condicionando a experiência da realidade, as tecnologias da informática, amplificam aspectos da capacidade de ação intelectual. Talvez este aspecto explique em parte o mito - disseminado no início dos anos oitenta com a linguagem LOGO e desde então reforçado pela mídia - que computadores desenvolvem a inteligência das crianças, apesar das pesquisas sérias não corroborarem tal coisa.6 O fato de “inteligência” ser um conceito amplo, uma realidade construída, não visível, um terreno fértil para interpretações enganosas, torna-se fácil disseminar a crença na sua ampliação pelo uso de instrumentos.
Esse tipo de análise normalmente não se encontra nos livros sobre informática na educação e não é uma tarefa simples que possa ser feita sem a experiência com a tecnologia, em tempos e espaços determinados. Supõe uma atitude inicial de despojamento de pré concepções, de predisposições, especialmente aquelas provocadas pelo efeito dramático da novidade, tanto nos seus aspectos positivos (acesso a novas formas de manipulação de um objeto como a escrita e a reescrita, por exemplo), como negativos (desorganização inicial de um atividade em grupo que era feita em sala de aula segundo rotinas com resultados previsíveis).
Esse tipo de construção de novas formas de ensinar e de aprender, de conhecimentos novos, exigirá do professor uma atitude permanente de tolerância à frustração e de pesquisa não formal, de busca, de descoberta e criação, no sentido tratado por Demo [xxi]. Descoberta de usos pedagógicos da tecnologia já experimentados por outros, que exige comunicação, troca, estudo, exploração. Criação no sentido de adaptação, de extensão, de invenção. Em ambos os casos, fracassos e sucessos são faces da mesma moeda, com demonstra a história da produção humana de conhecimento e especificamente as histórias de sucesso em Informática Na educação.
Sandholtz, Ringstaff & Dwyer [xxii], nos oferecem um dos raros relatos baseados no cotidiano de vários professores de escolas norte-americanas saturadas de tecnologia, durante cerca de uma década, assistidos por especialistas. Nossas escolas públicas e professores, como vimos no início deste trabalho, ainda não possuem ambientes favoráveis a este tipo de atividade. Isto no entanto, não significa que não devamos iniciá-la, que o professor desista de experimentar, de ousar. Lembro, por exemplo, de um jovem professor de uma escola de periferia de Recife, que aos sábados levava seu computador pessoal para a escola, compartilhando-o com um grupo de alunos.
Como coloquei em outro trabalho [xxiii], que aspectos da experiência humana da escola e do ato de educar, nos conteúdos das várias disciplinas e séries, merecem e podem ser transformados, ampliados ou reduzidos com a Informática e a Telemática? Quais as implicações das reduções que inexoravelmente ocorrerão, uma vez passado o caráter dramático inicial? Tais perguntas não são fáceis de responder, mas podem servir de guias genéricos para a reflexão e a experimentação em situações do cotidiano da escola, onde o professor e o administrador dispõem pouco do apoio confortável e protetor de conhecimentos acumulados, pois o uso pedagógico das novas tecnologias é algo relativamente incipiente.
REFERÊNCIAS
i PIRSIG, R. (1984). Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas: Uma Investigação Sobre Valores. RJ, Paz e Terra.
ii CUBAN, L. (1986). Teachers and Machines: The Classroom use of Technology Since 1920. NY, Teachers College Press.
iii WATSON, D. M. (1993.). The ImpacT Summary: An evaluation of the impact of Information Technology on children’s achievements in primary and secondary schools. London, King’s College.
iv VALENTE, J., Almeida, F. (1997). Visão Analítica da Informática na Educação no Brasil: A Questão da Formação do Professor. Revista Brasileira de Informática na Educação.(SBC-IE, UFSC), n. 01, setembro 1997, pp.45-60.
v OPPENHEIMER, T. (1997). The Computer Delusion. The Atlantic Monthly, Jul.97, v. 280
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