Outro dia escrevi um artigo sobre o amor. Depois, escrevi outro sobre sexo.
Os dois artigos mexeram com a cabeça de pessoas que encontro na rua e que me agarram, dizendo: "Mas... afinal, o que é o amor?" E esperam, de olho muito aberto, uma resposta "profunda". Sei apenas que há um amor mais comum, do dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, um amor que muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou "não te amo". Eu, branco, classe média, brasileiro, já vi esse amor mudar muito. Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo romântico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a busca de um "desregramento dos sentidos". Depois, nos anos 80/90 foi ficando um amor de consumo, um amor de mercado, uma progressiva apropriação indébita do "outro". O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável. Hoje, temos controle, sabemos por que "amamos", temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção. A cultura americana está criando um "desencantamento" insuportável na vida social. O amor é a recusa desse desencanto. O amor quer o encantamento que os bichos têm, naturalmente.
Por isso, permitam-me hoje ser um falso "profundo" (tratar só de política me mata...) e falar de outro amor, mais metafísico, mais seminal, que transcende as décadas, as modas. Esse amor é como uma demanda da natureza ou, melhor, do nosso exílio da natureza. É um amor quase como um órgão físico que foi perdido. Como escreveu o Ferreira Gullar outro dia, num genial poema publicado sobre a cor azul, que explica indiretamente o que tento falar: o amor é algo "feito um lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa mancha/ que a mim chegou/ de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites estreladas/ como um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo como carrego meus cabelos ou uma lesão oculta onde ninguém sabe".
Pois, senhores, esse amor existe dentro de nós como uma fome quase que "celular". Não nasce nem morre das "condições históricas"; é um amor que está entranhado no DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, quase uma "lesão oculta" dos seres expulsos da natureza. Nós somos o único bicho "de fora", estrangeiro. Os bichos têm esse amor, mas nem sabem.
(Estou sendo "filosófico", mas... tudo bem... não perguntaram?) Esse amor bate em nós como os frêmitos primordiais das células do corpo e como as fusões nucleares das galáxias; esse amor cria em nós a sensação do Ser, que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso com o universo. Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e óvulo se interpenetrando. Por obra do amor, saímos do ventre e queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa origem celular, indo até a dança primitiva das moléculas. Somos grandes células que querem se re-unir, separados pelo sexo, que as dividiu. ("Sexo" vem de "secare" em latim: separar, cortar.) O amor cria momentos em que temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a máquina da vida se explica, em que tudo parece parar num arrepio, como uma lembrança remota. Como disse Artaud, o louco, sobre a arte (ou o amor) : "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de algo transcendental com que a arte nos põe em contato." E a arte não é a linguagem do amor? E não falo aqui dos grandes momentos de paixão, dos grandes orgasmos, dos grande beijos - eles podem ser enganosos. Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de um mistério que subitamente parece revelado. Há, nesse amor, uma clara geometria entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge, quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o seu brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre as tranças da mulher amada e tudo parece decifrado. Mas, não se decifra nunca, como a poesia. Como disse alguém: a poesia é um desejo de retorno a uma língua primitiva. O amor também. Melhor dizendo: o amor é essa tentativa de atingir o impossível, se bem que o "impossível" é indesejado hoje em dia; só queremos o controlado, o lógico. O amor anda transgênico, geneticamente modificado, fast love.
Escrevi outro dia que "o amor vive da incompletude e esse vazio justifica a poesia da entrega. Ser impossível é sua grande beleza. Claro que o amor é também feito de egoísmos, de narcisismos mas, ainda assim, ele busca uma grandeza - mesmo no crime de amor há um terrível sonho de plenitude. Amar exige coragem e hoje somos todos covardes".
Mas, o fundo e inexplicável amor acontece quando você "cessa", por brevíssimos instantes. A possessividade cessa e, por segundos, ela fica compassiva. Deixamos o amado ser o que é e o outro é contemplado em sua total solidão. Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de "compaixão" pelo nosso desamparo.
Esperamos do amor essa sensação de eternidade. Queremos nos enganar e achar que haverá juventude para sempre, queremos que haja sentido para a vida, que o mistério da "falha" humana se revele, queremos esquecer, melhor, queremos "não-saber" que vamos morrer, como só os animais não sabem. O amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Como os relâmpagos, o amor nos liga entre a Terra e o céu. Mas, como souberam os grandes poetas como Cabral e Donne, a plenitude do amor não nos faz virar "anjos", não. O amor não é da ordem do céu, do espírito. O amor é uma demanda da terra, é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse "absoluto", que está na calma felicidade dos animais.
"A tecnologia digital é a arte de criar necessidades desnecessárias que se tornam absolutamente imprescindíveis." (Joelmir Beting)
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
O mundo de hoje é travesti
Está rolando na internet um texto ridículo sobre "mulheres" atribuído a mim.
Sou uma besta, todos o sabem; mas, não chego a esse relincho lamentável do asno que o escreveu. Diz coisas como: "A mulher tem um cheirinho gostoso, elas sempre encontram um lugarzinho em nosso ombro." Uma bosta, atribuída a mim. Toda hora um idiota me copia e joga na rede. Por isso, vou falar um pouco de mulher, eu que mal as entendo na vida. Não falarei das coxas e seios e bumbuns... Falo de uma aura mais fluida que as percorre.
Gosto do olhar de onça, parado, quando queremos seduzi-las, mesmo sinceramente, pois elas sabem que a sinceridade é volúvel, não perdura. Um sorriso de descrédito lhes baila na boca quando lhe fazemos galanteios, mas acreditam assim mesmo, porque elas querem ser amadas, muito mais que desejadas. Elas estão sempre fora da vida social, mesmo quando estão dentro.
Podem ser as maiores executivas, mas seu corpo lateja sob o tailleur e lá dentro os órgãos estranham a estatística e o negócio. Elas querem ser vestidas pelo amor. O amor para elas é um lugar onde se sentem seguras, protegidas.
O termômetro das mulheres é: "Estou sendo amada ou não? Esse bocejo, seu rosto entediado... será que ele me ama ainda?" A mulher não acredita em nosso amor. Quando tem certeza dele, pára de nos amar. A mulher precisa do homem impalpável, impossível. As mulheres têm uma queda pelo canalha. O canalha é mais amado que o bonzinho. Ela sofre com o canalha, mas isso a justifica e engrandece, pois ela tem uma missão amorosa: quer que o homem a entenda, mas isso está fora de nosso alcance. A mulher pensa por metáforas.
O homem por metonímias. Entenderam? Claro que não. Digo melhor, a mulher compõe quadros mentais que se montam em um conjunto simbólico sem fim, como a arte. O homem quer princípio, meio e fim. Não estou falando da mulher sociológica, nem contemporânea, nem política. Falo de um sétimo órgão que todas têm, de um "ponto g" da alma.
Mulher não tem critério; pode amar a vida toda um vagabundo que não merece ou deixar de amar instantaneamente um sujeito devoto. Nada mais terrível que a mulher que cessa de te amar. Você vira um corpo sem órgãos, você vira também uma mulher abandonada.
Toda mulher é "Bovary"... e para serem amadas, instilam medo no coração do homem. Carinhosas, mas com perigo no ar. A carinhosa total entedia os machos... ficam claustrofóbicos. O homem só ama profundamente no ciúme. Só o corno conhece o verdadeiro amor. Mas, curioso, a mulher nunca é corna, mesmo abandonada, humilhada, não é corna. O homem corneado, carente, é feio de ver. A mulher enganada ganha ares de heroína, quase uma santidade. É uma fúria de Deus, é uma vingadora, é até suicida. Mas nunca corna. O homem corno é um palhaço. Ninguém tem pena do corno. O ridículo do corno é que ele achava que a possuía. A mulher sabe que não tem nada, ela sabe que é um processo de manutenção permanente. O homem só vira homem quando é corneado.
A mulher não vira nada nunca. Nem nunca é corneada... pois está sempre se sentindo assim. Como no homossexualismo: a lésbica não é viado.
A mulher é poesia. O homem é prosa. Isso não quer dizer que a mulher seja do bem e o homem do mal. Não. Muita vez, seus abismos são venenosos, seu mistério nos mata. A mulher quer ser possuída, mas não só no sexo, tipo "me come todinha". Falam isso no motel, para nos animar. O homem é pornográfico; a mulher é amorosa. A pornografia é só para homens. A mulher quer ser possuída em sua abstração, em sua geografia mutante, a mulher quer ser descoberta pelo homem para ela se conhecer. Ela é uma paisagem que quer ser decifrada pelas mãos e bocas dos exploradores. Ela não sabe quem é. Mas elas também não querem ser opacas, obscuras. Querem descobrir a beleza que cabe a nós revelar-lhes. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe.
O masculino é certo; o feminino é insolúvel. O homem é espiritual e a mulher é corporal. A mulher é metafísica; homem é engenharia. A mulher deseja o impossível; desejar o impossível é sua grande beleza. Ela vive buscando atingir a plenitude e essa luta contra o vazio justifica sua missão de entrega. Mesmo que essa "plenitude" seja um "living" bem decorado ou o perfeito funcionamento do lar. O amor exige coragem. E o homem... é mais covarde. O homem, quando conquista, acha que não tem mais de se esforçar e aí , dança...
A mulher é muito mais exilada das certezas da vida que o homem. Ela é mais profunda que nós. Ela vive mais desamparada e, no entanto, mais segura. A vida e a morte saem de seu ventre. Ela faz parte do grande mistério que nós vemos de fora, com o pauzinho inerme. Ela tem algo de essencial, tem algo a ver com as galáxias. Nós somos um apêndice.
Hoje em dia, as mulheres foram expulsas de seus ninhos de procriação, de sua sexualidade passiva, expectante e jogadas na obrigação do sexo ativo e masculino. A supergostosa é homem. É um travesti ao contrário. Alguns dizem que os homens erigiram seus poderes e instituições apenas para contrariar os poderes originais bem superiores da mulher.
As mulheres sofrem mais com o mal do mundo. Carregam o fardo da dor histórica e social, por serem mais sensíveis e mais fracas. Os homens, por serem fálicos, escamoteiam a depressão e a consciência da morte com obsessões bélicas, financeiras ou políticas. As mulheres agüentam firmes a dor incompreendida. O mundo está tão indeterminado que está ficando feminino, como uma mulher perdida: nunca está onde pensa estar. O mundo determinista se fracionou globalmente, como a mulher. Mas não é o mundo delicado, romântico e fértil da mulher; é um mundo feminino comandado por homens boçais. Talvez seja melhor dizer um mundo travesti. O mundo hoje é travesti.
Sou uma besta, todos o sabem; mas, não chego a esse relincho lamentável do asno que o escreveu. Diz coisas como: "A mulher tem um cheirinho gostoso, elas sempre encontram um lugarzinho em nosso ombro." Uma bosta, atribuída a mim. Toda hora um idiota me copia e joga na rede. Por isso, vou falar um pouco de mulher, eu que mal as entendo na vida. Não falarei das coxas e seios e bumbuns... Falo de uma aura mais fluida que as percorre.
Gosto do olhar de onça, parado, quando queremos seduzi-las, mesmo sinceramente, pois elas sabem que a sinceridade é volúvel, não perdura. Um sorriso de descrédito lhes baila na boca quando lhe fazemos galanteios, mas acreditam assim mesmo, porque elas querem ser amadas, muito mais que desejadas. Elas estão sempre fora da vida social, mesmo quando estão dentro.
Podem ser as maiores executivas, mas seu corpo lateja sob o tailleur e lá dentro os órgãos estranham a estatística e o negócio. Elas querem ser vestidas pelo amor. O amor para elas é um lugar onde se sentem seguras, protegidas.
O termômetro das mulheres é: "Estou sendo amada ou não? Esse bocejo, seu rosto entediado... será que ele me ama ainda?" A mulher não acredita em nosso amor. Quando tem certeza dele, pára de nos amar. A mulher precisa do homem impalpável, impossível. As mulheres têm uma queda pelo canalha. O canalha é mais amado que o bonzinho. Ela sofre com o canalha, mas isso a justifica e engrandece, pois ela tem uma missão amorosa: quer que o homem a entenda, mas isso está fora de nosso alcance. A mulher pensa por metáforas.
O homem por metonímias. Entenderam? Claro que não. Digo melhor, a mulher compõe quadros mentais que se montam em um conjunto simbólico sem fim, como a arte. O homem quer princípio, meio e fim. Não estou falando da mulher sociológica, nem contemporânea, nem política. Falo de um sétimo órgão que todas têm, de um "ponto g" da alma.
Mulher não tem critério; pode amar a vida toda um vagabundo que não merece ou deixar de amar instantaneamente um sujeito devoto. Nada mais terrível que a mulher que cessa de te amar. Você vira um corpo sem órgãos, você vira também uma mulher abandonada.
Toda mulher é "Bovary"... e para serem amadas, instilam medo no coração do homem. Carinhosas, mas com perigo no ar. A carinhosa total entedia os machos... ficam claustrofóbicos. O homem só ama profundamente no ciúme. Só o corno conhece o verdadeiro amor. Mas, curioso, a mulher nunca é corna, mesmo abandonada, humilhada, não é corna. O homem corneado, carente, é feio de ver. A mulher enganada ganha ares de heroína, quase uma santidade. É uma fúria de Deus, é uma vingadora, é até suicida. Mas nunca corna. O homem corno é um palhaço. Ninguém tem pena do corno. O ridículo do corno é que ele achava que a possuía. A mulher sabe que não tem nada, ela sabe que é um processo de manutenção permanente. O homem só vira homem quando é corneado.
A mulher não vira nada nunca. Nem nunca é corneada... pois está sempre se sentindo assim. Como no homossexualismo: a lésbica não é viado.
A mulher é poesia. O homem é prosa. Isso não quer dizer que a mulher seja do bem e o homem do mal. Não. Muita vez, seus abismos são venenosos, seu mistério nos mata. A mulher quer ser possuída, mas não só no sexo, tipo "me come todinha". Falam isso no motel, para nos animar. O homem é pornográfico; a mulher é amorosa. A pornografia é só para homens. A mulher quer ser possuída em sua abstração, em sua geografia mutante, a mulher quer ser descoberta pelo homem para ela se conhecer. Ela é uma paisagem que quer ser decifrada pelas mãos e bocas dos exploradores. Ela não sabe quem é. Mas elas também não querem ser opacas, obscuras. Querem descobrir a beleza que cabe a nós revelar-lhes. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe.
O masculino é certo; o feminino é insolúvel. O homem é espiritual e a mulher é corporal. A mulher é metafísica; homem é engenharia. A mulher deseja o impossível; desejar o impossível é sua grande beleza. Ela vive buscando atingir a plenitude e essa luta contra o vazio justifica sua missão de entrega. Mesmo que essa "plenitude" seja um "living" bem decorado ou o perfeito funcionamento do lar. O amor exige coragem. E o homem... é mais covarde. O homem, quando conquista, acha que não tem mais de se esforçar e aí , dança...
A mulher é muito mais exilada das certezas da vida que o homem. Ela é mais profunda que nós. Ela vive mais desamparada e, no entanto, mais segura. A vida e a morte saem de seu ventre. Ela faz parte do grande mistério que nós vemos de fora, com o pauzinho inerme. Ela tem algo de essencial, tem algo a ver com as galáxias. Nós somos um apêndice.
Hoje em dia, as mulheres foram expulsas de seus ninhos de procriação, de sua sexualidade passiva, expectante e jogadas na obrigação do sexo ativo e masculino. A supergostosa é homem. É um travesti ao contrário. Alguns dizem que os homens erigiram seus poderes e instituições apenas para contrariar os poderes originais bem superiores da mulher.
As mulheres sofrem mais com o mal do mundo. Carregam o fardo da dor histórica e social, por serem mais sensíveis e mais fracas. Os homens, por serem fálicos, escamoteiam a depressão e a consciência da morte com obsessões bélicas, financeiras ou políticas. As mulheres agüentam firmes a dor incompreendida. O mundo está tão indeterminado que está ficando feminino, como uma mulher perdida: nunca está onde pensa estar. O mundo determinista se fracionou globalmente, como a mulher. Mas não é o mundo delicado, romântico e fértil da mulher; é um mundo feminino comandado por homens boçais. Talvez seja melhor dizer um mundo travesti. O mundo hoje é travesti.
A PEDOFILIA NA IGREJA É CONSEQUÊNCIA DO CELIBATO
Os votos de castidade enlouquecem os sacerdotes católicos.
No velho colégio de padres onde estudei, a entrada dos alunos já era um desfile de velada pedofilia. O padre reitor - ahh...tempos antigos de batinas negras, rosários nas mãos, panos roxos nos ombros, tristeza infinita nas clausuras - postava-se imóvel, na porta do colégio, numa pose paternal e severa, com os braços erguidos e as mãos oferecidas para os alunos que chegavam. Passavam por ele duas filas de dezenas de meninos, beijando servilmente suas mãos abençoadas. Havia algo de veadagem naquilo, aquela negra batina imóvel, divina, como um manequim, as mãos beijadas com chilreios e devoção por mais de quinhentos meninos de calças curtas. Eu ainda me lembro do vago cheiro de sabonete e cuspe no dorso cabeludo da
mão do padre. Centenas de meninos de pernas nuas eram pastoreados por tristes noviços e "irmãos leigos". Só se pensava em sexo naquele colégio. Eu via as mães dos alunos, lindas, com seus penteados e decotes imitando a Jane
Russel ou Ava Gardner, fazendo charme para os padres na força de seus verdes anos, enlouquecidos pela castidade obrigatória. E eu me perguntava: "Meu Deus...por que padre não pode casar?" Lembro-me do tremor dos jovens
padres, excitados pelas madames pintadíssimas, indo se trancar em negras clausuras, entregues ao "vício solitário", indo depois bater no peito e chorar sua culpa diante das imagens silenciosas.
E esses mesmos padres nos diziam: "Cada vez que você se masturba, morrem milhões de pessoas que iam nascer. É um genocídio!". E nós, além do pecado, sofríamos a vergonha de ser pequenos "hitlers" de banheiro. Eu pensava: "Por que tanta onda sobre nossos pobres pintinhos, por que essa energia que sinto em minha carne é feia, criminosa?" Vivíamos ajoelhados em confessionários, ouvindo envergonhados a voz e o hálito do triste sacerdote nos sentenciando a dezenas de "ave-marias" e "padre-nossos".
Tudo era sexo no colégio; essa palavra terrível estava em toda parte, como uma ameaça vermelha; o diabo nos espreitava até detrás das estátuas de Santa Tereza em êxtase, nas coxas dos anjinhos nus, nos seios fervorosos das beatas acendendo velas.
A pedofilia na igreja é consequência direta do celibato. É óbvio que se a força máxima da vida é esmagada, a igreja vira uma máquina de perversões.
Claro. E de homosexualismo, visível em qualquer internato religioso. Outro dia, o Contardo Calligaris escreveu com precisão que a pedofilia não está só na carne do jovem assediado; a pedofilia é mais geral, abstrata, no prazer do domínio sobre os mais fracos, na pedagogia infantilizante das jovens "ovelhas" - como nos chamam os pastores de Deus - imoladas em sua
inocência.
Eu vi o diabo naquele colégio: rostos angustiados, berros severos e excessivos nas aulas, castigos sádicos, perseguições a uns e carinhos protetores a outros.
Eu mesmo fui assediado por um padre famoso (que muitos colegas meus da época se lembram) que era notório comedor de menininhos; ele fazia mágicas e teatrinhos, para ser popular entre os meninos e, um dia, tentou me beijar num canto da clausura. Criado na malandragem das ruas, fugi em pânico. E falei disso em confissão com outro padre, que mudou de assunto, como se fosse uma impressão minha, como se a pedofilia fosse uma prática necessária à manutenção do celibato, exatamente como os cardeais americanos estão fazendo hoje. O problema da igreja com o sexo leva-a a uma compreensão quebrada da vida, leva-a a aceitar a Aids, a condenar o aborto, o controle social da natalidade e a outros erros maiores - superestruturas desta falência originária, desse vazio fundamental.
Lembro-me da descrição da eternidade no inferno, onde queimaríamos para sempre, sob o garfo dos diabos, condenados por uma reles punhetinha:
"Imaginem que o planeta seja um grande diamante, o metal mais duro do universo. De cem em cem anos, um passarinho vem voando e dá uma bicadinha na Terra. O dia em que toda a Terra for esfarinhada pelas bicadinhas, esse é a duração da eternidade" . E eu sofria, me esvaindo nos banheiros, pensando naquele passarinho que bicava o mundo, enquanto eu acariciava o outro medroso passarinho se preparando para uma vida de traumas e medos.
O prazer era um crime. A partir daí, tudo ficava poluído, manchado de culpa; a alegria virava falta de seriedade, a liberdade era um erro, as meninas eram seres inatingíveis com seus peitinhos e bundinhas. Até hoje, vivo dividido entre as santas e as "impuras"; quantas dores senti na vida pelo cultivo destes ensinamentos, que transformava as mulheres em perigos horrendos, "Liliths" demoníacas, tão ameaçadoras quanto o imenso desejo que tinhamos por elas. A mulher, como Eva, era a origem de todos os males.
Delas saía a vida e a morte, delas saía o prazer pecaminoso, o mal do mundo.
Esta base criminal gera desde a "burka" até o "striptease", numa antítese simétrica.
Hoje piorou. O mundo virou uma incessante paisagem de bundas e seios nus, de pornografia na publicidade, que nos espreita no trânsito, nas ruas, na TV. Já imaginaram esses padres vendo a Feiticeira e a Tiazinha, de terço na mão, trancados em escuras celas, sob o voto de castidade? Essa é a minha idéia de inferno.
Uma das grandes desvantagens da igreja católica diante de outras religiões é o celibato. Daí, em cascata, surgem problemas que justificam a queda do prestígio da igreja na era do espetáculo e da desconstrução de certezas.
Rabinos casam, pastores protestantes casam. Budistas "do it", xintoistas "do it", indis "do it', mesmo muçulmanos "do it". "Let's do it", pobres padres trêmulos de desejo, no meu remoto passado jesuíta e no presente do sexo massificado.
No velho colégio de padres onde estudei, a entrada dos alunos já era um desfile de velada pedofilia. O padre reitor - ahh...tempos antigos de batinas negras, rosários nas mãos, panos roxos nos ombros, tristeza infinita nas clausuras - postava-se imóvel, na porta do colégio, numa pose paternal e severa, com os braços erguidos e as mãos oferecidas para os alunos que chegavam. Passavam por ele duas filas de dezenas de meninos, beijando servilmente suas mãos abençoadas. Havia algo de veadagem naquilo, aquela negra batina imóvel, divina, como um manequim, as mãos beijadas com chilreios e devoção por mais de quinhentos meninos de calças curtas. Eu ainda me lembro do vago cheiro de sabonete e cuspe no dorso cabeludo da
mão do padre. Centenas de meninos de pernas nuas eram pastoreados por tristes noviços e "irmãos leigos". Só se pensava em sexo naquele colégio. Eu via as mães dos alunos, lindas, com seus penteados e decotes imitando a Jane
Russel ou Ava Gardner, fazendo charme para os padres na força de seus verdes anos, enlouquecidos pela castidade obrigatória. E eu me perguntava: "Meu Deus...por que padre não pode casar?" Lembro-me do tremor dos jovens
padres, excitados pelas madames pintadíssimas, indo se trancar em negras clausuras, entregues ao "vício solitário", indo depois bater no peito e chorar sua culpa diante das imagens silenciosas.
E esses mesmos padres nos diziam: "Cada vez que você se masturba, morrem milhões de pessoas que iam nascer. É um genocídio!". E nós, além do pecado, sofríamos a vergonha de ser pequenos "hitlers" de banheiro. Eu pensava: "Por que tanta onda sobre nossos pobres pintinhos, por que essa energia que sinto em minha carne é feia, criminosa?" Vivíamos ajoelhados em confessionários, ouvindo envergonhados a voz e o hálito do triste sacerdote nos sentenciando a dezenas de "ave-marias" e "padre-nossos".
Tudo era sexo no colégio; essa palavra terrível estava em toda parte, como uma ameaça vermelha; o diabo nos espreitava até detrás das estátuas de Santa Tereza em êxtase, nas coxas dos anjinhos nus, nos seios fervorosos das beatas acendendo velas.
A pedofilia na igreja é consequência direta do celibato. É óbvio que se a força máxima da vida é esmagada, a igreja vira uma máquina de perversões.
Claro. E de homosexualismo, visível em qualquer internato religioso. Outro dia, o Contardo Calligaris escreveu com precisão que a pedofilia não está só na carne do jovem assediado; a pedofilia é mais geral, abstrata, no prazer do domínio sobre os mais fracos, na pedagogia infantilizante das jovens "ovelhas" - como nos chamam os pastores de Deus - imoladas em sua
inocência.
Eu vi o diabo naquele colégio: rostos angustiados, berros severos e excessivos nas aulas, castigos sádicos, perseguições a uns e carinhos protetores a outros.
Eu mesmo fui assediado por um padre famoso (que muitos colegas meus da época se lembram) que era notório comedor de menininhos; ele fazia mágicas e teatrinhos, para ser popular entre os meninos e, um dia, tentou me beijar num canto da clausura. Criado na malandragem das ruas, fugi em pânico. E falei disso em confissão com outro padre, que mudou de assunto, como se fosse uma impressão minha, como se a pedofilia fosse uma prática necessária à manutenção do celibato, exatamente como os cardeais americanos estão fazendo hoje. O problema da igreja com o sexo leva-a a uma compreensão quebrada da vida, leva-a a aceitar a Aids, a condenar o aborto, o controle social da natalidade e a outros erros maiores - superestruturas desta falência originária, desse vazio fundamental.
Lembro-me da descrição da eternidade no inferno, onde queimaríamos para sempre, sob o garfo dos diabos, condenados por uma reles punhetinha:
"Imaginem que o planeta seja um grande diamante, o metal mais duro do universo. De cem em cem anos, um passarinho vem voando e dá uma bicadinha na Terra. O dia em que toda a Terra for esfarinhada pelas bicadinhas, esse é a duração da eternidade" . E eu sofria, me esvaindo nos banheiros, pensando naquele passarinho que bicava o mundo, enquanto eu acariciava o outro medroso passarinho se preparando para uma vida de traumas e medos.
O prazer era um crime. A partir daí, tudo ficava poluído, manchado de culpa; a alegria virava falta de seriedade, a liberdade era um erro, as meninas eram seres inatingíveis com seus peitinhos e bundinhas. Até hoje, vivo dividido entre as santas e as "impuras"; quantas dores senti na vida pelo cultivo destes ensinamentos, que transformava as mulheres em perigos horrendos, "Liliths" demoníacas, tão ameaçadoras quanto o imenso desejo que tinhamos por elas. A mulher, como Eva, era a origem de todos os males.
Delas saía a vida e a morte, delas saía o prazer pecaminoso, o mal do mundo.
Esta base criminal gera desde a "burka" até o "striptease", numa antítese simétrica.
Hoje piorou. O mundo virou uma incessante paisagem de bundas e seios nus, de pornografia na publicidade, que nos espreita no trânsito, nas ruas, na TV. Já imaginaram esses padres vendo a Feiticeira e a Tiazinha, de terço na mão, trancados em escuras celas, sob o voto de castidade? Essa é a minha idéia de inferno.
Uma das grandes desvantagens da igreja católica diante de outras religiões é o celibato. Daí, em cascata, surgem problemas que justificam a queda do prestígio da igreja na era do espetáculo e da desconstrução de certezas.
Rabinos casam, pastores protestantes casam. Budistas "do it", xintoistas "do it", indis "do it', mesmo muçulmanos "do it". "Let's do it", pobres padres trêmulos de desejo, no meu remoto passado jesuíta e no presente do sexo massificado.
MENINOS, EU VI... MENINOS, EU VI...
VOCÊS VIRAM TAMBÉM, MAS ACHO QUE ESQUECERAM.
Eu vi as empregadas gritando, a cozinheira chorando, o rádio dando a notícia: "Getúlio deu um tiro no peito!"
Eu, pequeno, imaginava o peito sangrando - como é que um homem sai da presidência para o nada?
Meninos, eu ouvi, anos depois, no estribo de um bonde:
"O Jânio renunciou!"
Como? Tomou um porre e foi embora depois de proibir o biquíni, briga de galo e de dar uma medalha para o Che, eu vi a história andando em marcha a ré e eu entendi ali, com o Jânio saindo, que os bons tempos da utopia de JK tinham acabado, que alguma coisa suja e negra estava a caminho como um trem fantasma andando pra trás.
Depois, meninos, eu vi o fogo queimar a UNE, onde chegaria o "socialismo tropical", em abril de 64, quando fugi pela janela dos fundos, enquanto o General Mourão Filho tomava a cidade, dizendo:
"Não sei nada. Sou apenas uma vaca fardada!"
Eu vi, meninos, como num pesadelo, a população festejando a vitória do fascismo, com velas na janela e rosários na mão; vi a capa do "O Cruzeiro" com o novo presidente da República de boné verde, baixinho, feio, quem era?
Era o Castelo Branco e senti que surgia ali um outro Brasil desconhecido e, aí, eu vi as pedras, os anúncios, os ônibus, os postes, o meio-fio, os pneus dos carros, como um filme de horror; Eu, que vivera até então de palavras utópicas, estava sendo humilhado pela invasão do terrível mundo das coisas reais.
Depois, vi a tristeza dos dias militares, "Brasil ame-o ou deixe-o", a Transamazônica arrombando a floresta, vi o rosto patético de Costa e Silva,a gargalhada da primeira perua Yolanda, mandando o marido fechar o Congresso.
Vi e ouvi Jorge Curi na TV, numa noite imunda e ventosa de dezembro lendo o AI-5, o fim de todas as liberdades, a morte espreitando nas esquinas, a gente enlouquecendo e fugindo pela rua em câmera lenta, criminosos na própria terra;
Depois, vi o rosto terrível do Médici, frio como um vampiro, com sua mulher do lado, muito magra, infeliz, vi tudo misturado com a Copa do mundo de 70, Pelé, Tostão, Rivelino e porrada, tortura, sangue dos amigos guerrilheiros heróicos e loucos, eu sentindo por eles respeito e desprezo, pela coragem e pela burrice de querer vencer o Exército com estilingues;
Não vi, mas muitos viram meu amigo Stuart Angel morrendo com a boca no cano de descarga de um jipe, dentro de um quartel, na frente dos pelotões, enquanto, em S.Paulo, Herzog era pendurado numa corda e os publicitários enchiam o rabo de dinheiro com as migalhas do "milagre" brasileiro, enquanto as cachoeiras de Sete Quedas desapareciam de repente;
Depois eu vi os órgãos genitais do General Figueiredo, sobressaindo em sua sunguinha preta, ele fazendo ginástica, nu, para a nação contemplar, era nauseante ver o presidente pulando a cavalo, truculento, devolvendo o país falido aos paisanos, para nós pagarmos a conta da dívida externa.
Vi, as grandes marchas pelas "diretas" e vi, estarrecido, um micróbio chegando para mudar nossa história, um micróbio andando pela rua, de galochas e chapéu, entrando na barriga do Tancredo na hora da posse e matando o homem, diante de nosso desespero.
E eu vi então a democracia restaurada pelo bigodão de Sarney, o homem da ditadura, de jaquetão, posando de oligarca esclarecido;
Vi o fracasso do Plano Cruzado, depois eu vi a volta de todos os vícios nacionais, o clientelismo, a corrupção, a impossibilidade de governar o país, a inflação chegando a 80 por cento num único mês.
Meninos, eu vi as maquininhas do supermercado fazendo tlec tlec tlec como matracas fúnebres de nossa tragédia.
Eu vi tanta coisa, meninos, eu vi a inflação comer salários dos mais pobres a 2% ao dia.
Eu vi o massacre de miseráveis pela fome, ou melhor, eu não vi os milhões de mortos pela correção monetária, não vi porque eles morriam silenciosamente, longe da burguesia e da mídia.
Mas vi os bancos ganhando bilhões no over e no spread , dólares no colchão, a sensação de perda diária de valor da vida.
Eu vi a decepção com a democracia, pois tudo tinha piorado, eu vi de repente o Collor vindo de longe, fazendo um cooper em direção a nosso destino, bonito, jovem, fascinando os otários da nação, que entraram numa onda política "aveadada", dizendo:
"Ele é macho, bonito e vai nos salvar...".
Eu vi o Collor tascar a grana do país todo e depois a nação passar dois anos "de quatro", olhando pelo buraco da fechadura da Casa da Dinda, para saber o que nos esperava.
Eu vi Rosane Collor chorando porque o presidente tirara a aliança.
Eu vi a barriga de Joãozinho Malta, irmão da primeira-dama, dando tiros nas pessoas, eu vi a piscina azul no meio da caatinga, eu vi depois a sinistra careca de PC juntando o bilhão do butim.
Eu vi Zélia dançando o bolero com Cabral em cima de nossa cara, eu vi a guerra dos irmãos Collor, Fernando contra Pedro e, depois, como numa saga grega, eu vi o câncer corroendo-lhe a cabeça.
Eu vi o impeachment , eu vi tanta coisa, meninos, e depois eu vi, por acaso, por mero acaso, por uma paixão de Itamar, eu vi o FHC chegar ao poder, com a única tentativa de racionalidade política de nossa história num antro de fisiológicos e ignorantes.
E, aí, eu vi a maior campanha de oposição de nossa época, implacável, sabotadora, eu vi a inveja repulsiva da Academia contra ele, eu vi a traição de seus aliados, todos unidos contra as reformas, uns agarrados na corrupção e outros na sobrevida de suas doenças ideológicas infantis.
E agora eu vejo o estranho desejo de regresso ao mundo do atraso, do erro e das velhas utopias. Vejo a direita se organizando para cooptar a oposição, comendo-a, vejo um exército de oligarcas se preparando para a vingança, vejo ACM, Barbalhos e Sarneys prontos para tomar o Congresso de assalto, para impedir qualquer mudança e voltar aos bons tempos da zona geral.
Meninos, vocês viram também, mas acho que esqueceram.
Eu vi as empregadas gritando, a cozinheira chorando, o rádio dando a notícia: "Getúlio deu um tiro no peito!"
Eu, pequeno, imaginava o peito sangrando - como é que um homem sai da presidência para o nada?
Meninos, eu ouvi, anos depois, no estribo de um bonde:
"O Jânio renunciou!"
Como? Tomou um porre e foi embora depois de proibir o biquíni, briga de galo e de dar uma medalha para o Che, eu vi a história andando em marcha a ré e eu entendi ali, com o Jânio saindo, que os bons tempos da utopia de JK tinham acabado, que alguma coisa suja e negra estava a caminho como um trem fantasma andando pra trás.
Depois, meninos, eu vi o fogo queimar a UNE, onde chegaria o "socialismo tropical", em abril de 64, quando fugi pela janela dos fundos, enquanto o General Mourão Filho tomava a cidade, dizendo:
"Não sei nada. Sou apenas uma vaca fardada!"
Eu vi, meninos, como num pesadelo, a população festejando a vitória do fascismo, com velas na janela e rosários na mão; vi a capa do "O Cruzeiro" com o novo presidente da República de boné verde, baixinho, feio, quem era?
Era o Castelo Branco e senti que surgia ali um outro Brasil desconhecido e, aí, eu vi as pedras, os anúncios, os ônibus, os postes, o meio-fio, os pneus dos carros, como um filme de horror; Eu, que vivera até então de palavras utópicas, estava sendo humilhado pela invasão do terrível mundo das coisas reais.
Depois, vi a tristeza dos dias militares, "Brasil ame-o ou deixe-o", a Transamazônica arrombando a floresta, vi o rosto patético de Costa e Silva,a gargalhada da primeira perua Yolanda, mandando o marido fechar o Congresso.
Vi e ouvi Jorge Curi na TV, numa noite imunda e ventosa de dezembro lendo o AI-5, o fim de todas as liberdades, a morte espreitando nas esquinas, a gente enlouquecendo e fugindo pela rua em câmera lenta, criminosos na própria terra;
Depois, vi o rosto terrível do Médici, frio como um vampiro, com sua mulher do lado, muito magra, infeliz, vi tudo misturado com a Copa do mundo de 70, Pelé, Tostão, Rivelino e porrada, tortura, sangue dos amigos guerrilheiros heróicos e loucos, eu sentindo por eles respeito e desprezo, pela coragem e pela burrice de querer vencer o Exército com estilingues;
Não vi, mas muitos viram meu amigo Stuart Angel morrendo com a boca no cano de descarga de um jipe, dentro de um quartel, na frente dos pelotões, enquanto, em S.Paulo, Herzog era pendurado numa corda e os publicitários enchiam o rabo de dinheiro com as migalhas do "milagre" brasileiro, enquanto as cachoeiras de Sete Quedas desapareciam de repente;
Depois eu vi os órgãos genitais do General Figueiredo, sobressaindo em sua sunguinha preta, ele fazendo ginástica, nu, para a nação contemplar, era nauseante ver o presidente pulando a cavalo, truculento, devolvendo o país falido aos paisanos, para nós pagarmos a conta da dívida externa.
Vi, as grandes marchas pelas "diretas" e vi, estarrecido, um micróbio chegando para mudar nossa história, um micróbio andando pela rua, de galochas e chapéu, entrando na barriga do Tancredo na hora da posse e matando o homem, diante de nosso desespero.
E eu vi então a democracia restaurada pelo bigodão de Sarney, o homem da ditadura, de jaquetão, posando de oligarca esclarecido;
Vi o fracasso do Plano Cruzado, depois eu vi a volta de todos os vícios nacionais, o clientelismo, a corrupção, a impossibilidade de governar o país, a inflação chegando a 80 por cento num único mês.
Meninos, eu vi as maquininhas do supermercado fazendo tlec tlec tlec como matracas fúnebres de nossa tragédia.
Eu vi tanta coisa, meninos, eu vi a inflação comer salários dos mais pobres a 2% ao dia.
Eu vi o massacre de miseráveis pela fome, ou melhor, eu não vi os milhões de mortos pela correção monetária, não vi porque eles morriam silenciosamente, longe da burguesia e da mídia.
Mas vi os bancos ganhando bilhões no over e no spread , dólares no colchão, a sensação de perda diária de valor da vida.
Eu vi a decepção com a democracia, pois tudo tinha piorado, eu vi de repente o Collor vindo de longe, fazendo um cooper em direção a nosso destino, bonito, jovem, fascinando os otários da nação, que entraram numa onda política "aveadada", dizendo:
"Ele é macho, bonito e vai nos salvar...".
Eu vi o Collor tascar a grana do país todo e depois a nação passar dois anos "de quatro", olhando pelo buraco da fechadura da Casa da Dinda, para saber o que nos esperava.
Eu vi Rosane Collor chorando porque o presidente tirara a aliança.
Eu vi a barriga de Joãozinho Malta, irmão da primeira-dama, dando tiros nas pessoas, eu vi a piscina azul no meio da caatinga, eu vi depois a sinistra careca de PC juntando o bilhão do butim.
Eu vi Zélia dançando o bolero com Cabral em cima de nossa cara, eu vi a guerra dos irmãos Collor, Fernando contra Pedro e, depois, como numa saga grega, eu vi o câncer corroendo-lhe a cabeça.
Eu vi o impeachment , eu vi tanta coisa, meninos, e depois eu vi, por acaso, por mero acaso, por uma paixão de Itamar, eu vi o FHC chegar ao poder, com a única tentativa de racionalidade política de nossa história num antro de fisiológicos e ignorantes.
E, aí, eu vi a maior campanha de oposição de nossa época, implacável, sabotadora, eu vi a inveja repulsiva da Academia contra ele, eu vi a traição de seus aliados, todos unidos contra as reformas, uns agarrados na corrupção e outros na sobrevida de suas doenças ideológicas infantis.
E agora eu vejo o estranho desejo de regresso ao mundo do atraso, do erro e das velhas utopias. Vejo a direita se organizando para cooptar a oposição, comendo-a, vejo um exército de oligarcas se preparando para a vingança, vejo ACM, Barbalhos e Sarneys prontos para tomar o Congresso de assalto, para impedir qualquer mudança e voltar aos bons tempos da zona geral.
Meninos, vocês viram também, mas acho que esqueceram.
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